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domingo, 12 de junho de 2011

A BROCA

Estou juntamente com outros que amolam seus terçados. É uma prática muito interessante, pois quem amola para mostrar a qualidade do serviço e sua força procura uma árvore de regular grossura e desfere uma terçadada, decepando-a de um só golpe. Os demais, animados por tal demonstração fazem o mesmo; dessa forma, inicia-se uma porfia na qual não há vencedor, apenas o ambiente torna-se mais festivo.
Cícero amola seu terçado dizendo aos demais que pela primeira vez vou brocar. José do Banjo responde que vai me batizar quando chegarmos ao igarapé e logo o trabalho começa. Tenho a recomendação de ter cuidado com espinho de coquinho, de japecanga e com tiririca. O coquinho é fruto de uma palmeira cheia de espinho que quando entra no corpo é muito difícil de tirar. A japecanga é um cipó cujos espinhos são muito resistentes, já a tiririca é uma trepadeira cuja haste corta como navalha. Outra recomendação é para ter cuidado com ferrada de tucandeira. Pergunto a Cícero o que é tucandeira, e ele diz ser uma formiga cuja ferrada doe 24 horas. "Antes disso, só passa se uma virgem passar por cima três vezes e sem calça", arremata um trabalhador chamado Laurentino.
Em um espaço de duas horas tenho alguns cortes superficiais nos braços que ardem devido o suor. Vamos quebrar o jejum e amolar as ferramentas, diz Cícero e logo todos param. Piso num ninho de formigas cuja ferrada dói muito, mas logo passa. Mostro as mãos vermelhas e ardendo bastante, a orientação que recebo é de mijar nelas e passar no cabelo. Não entendo a recomendação, mas Cícero explica: "vai sempre passando a mão no cabelo e quando tiver vontade de mijar, faz nas mãos para engrossar e não deixar fazer calo e espocar se não tu não aguentas". Os outros não demonstram nem cansaço nem dores, sempre alegres, comentam suas dificuldades, falam de suas pobrezas e doenças, ensinando remédios; pois mais absurdo que possam parecer, são sérios.
Noto um trabalhador descalço, outro comenta o Raimundinho trabalha descalço só pata quebrar espinhos de coquinho e japecanga o que o deixa vaidoso e chego até a ficar com inveja. De repente uma ferrada acima do olho, outra ferrada na orelha, corro, outros correm, dói bastante, Laurentino diz que é maribondo tapiba e ensina põe a folha do terçado em cima que logo passa a dor o que faço imediatamente e aos poucos vai passando. 
É quase meio-dia, enquanto os demais companheiros trabalham tranquilamente já não consigo segurar o terçado, que as vezes escapa da mão e para abri-la tenho que auxiliar com os dedos da outra. Vem a ordem de parar e irmos ao igarapé. As roupas estão molhadas de suor, uns caem na água sem tirar a roupa. "Chegou a hora do batismo", diz Zé do Banjo. Não entendo. Ele me pega pelo braço direito, outro pelo braço esquerdo e me jogam na água. Não gosto da brincadeira, mas quando meu corpo encontra-se com a água fria, sinto que foi o melhor banho tomado em toda a minha vida.
O trabalho recomeça, outros marimbondos atacam defendendo suas moradas, os nome são diferentes como diferentes são as dores de suas ferroadas e os comentários que se seguem ao acontecido. Isso não dói. Dói mesmo é a ferrada da tatucaba e de mangangá. "Este é um frecheiro vou mostrar que tiro a casa dele com a mão", exclama Cícero. "Eu também tiro", diz Zé do Banjo. Cícero se adianta, passa a mão debaixo do braço e aproxima aos poucos da casa de marimbondos que vão diminuindo sua agressividade com mau cheiro forte do suor. Cícero tira a casa mostrando a todos com ar de triunfo.
Zé do Banjo diz: "Quero ver se tu és homem em tirar a casa do marimbondo tapiba". Cícero diz: "não tiro porque ele faz casa com as formigas tapibas". Nesta altura tínhamos deixado para trás parte da vegetação, onde estava localizada a casa do marimbondo tapiba, Cícero fez um feixe com folhas de sororoca e queima-os dizendo para quando chegar a derruba não ferrar ninguém. Laurentino se cortou! - exclama Raimundinho - foi muito? - Pergunta Zè do Banjo e logo todos são avisados. Laurentino vem pulando só com um pé e não deixa de ter comentários - parece até o curupira! Todos examinam, o golpe, quando vêem que não tem gravidade diz um dos trabalhadores - foi uma vacina! è para sair o sangue ruim - póe logo em cima! Diz Raimundinho. Lodo de pau para por sobre ferimento presta? - eu pergunto - presta para estancar o sangue! Diz Zé do Banjo. O golpe está derramando bastante  sangue e outros comentários logo surgem -quando o corpo esfriar estanca! É porque ele está bastante agitado! E examina-se qual a roupa mais frágil e com presteza todos querem cortar parte da sua. Alguém se adianta corta parte da sua e amarra logo o golpe.
Ao passar dos tempos o solado de meus pés estão mais grosso, minhas unhas mais resistentes, os espinhos que penetram nos meus pés não doem muito, os espinhos são tirados na hora cortando-se a parte do solado com faca peixeira. Outros são deixados até apustemar. A pele da minha mão que era fina encaliçou o que faz com que eu não tenha mais problemas com calos.

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