Com a orientação de Cícero compro alguns materiais para iniciar essa nova vida de trabalho: um par de tamancos, uma enxada e um chapéu de palha. Quanto a alimentação levo um pouco de farinha, feijão, toucinho e charque que será preparado no local de trabalho, pois já existe um rancho onde se pode passar a chuva e fazer refeições.
O roçado dista cerca de cinco quilômetros da ila. Como estávamos no mês de janeiro, antes de chegar tomamos o primeiro banho de chuva. Cícero pede a Deus que a chuva não se prolongue por todo o dia, pois pretende fazer a primeira limpa antes do arroz embuchar e o milho embonecar, o que me deixa curioso para conhecer estas palavras até então desconhecidas. Quando vou perguntar, ele se volta com um gesto para que pare, também põe o dedo na boca pedindo silêncio o que faço automaticamente então penetra mata adentro. Enquanto espero, escuto o canto de araquãs como se estivessem conversando ao amanhecer e fazendo planos para suas atividades diárias. Ouço um chamado diferente como se algo de errado estivesse acontecendo aos pássaros . Nesta altura chega mais uma pessoa que também para. É João Izabel que vem trabalhar como diarista. Pergunto-lhe o que está acontecendo. Ele responde que aquele piado diferente é de Cícero arremedando os pássaros. numa linguagem de pedido de socorro para que eles se aproximem. De repente um tiro ecoa; alguns pássaros dão grito de espanto e voam por sobre nós, pouco tempo depois, Cícero sai do mato exibindo uma araquã morta exclamando: "hoje eu como carne fresca!".
A caminhada continua. Pergunto a João o que é embuchamento de arroz, embonecar de milho e por que Cícero diz precisar limpar logo o roçado. João responde que com a limpeza o legume cresce mais forte. Além do mais, esta só pode ser feita antes do arroz embuchar e o milho embonecar, senão dá o chia. Pergunto o que é o chia. João responde que quando se capina perto do arroz soltar o cacho e o milho de encher a espiga prejudica a formação destes, por isso dizemos dá o chia.
Algum tempo depois chegamos ao igarapé onde aproveitamos para pegar água com as vasilhas disponíveis. João leva uma moringa. Cícero, um pote, e eu uma coité. Cícero observa: "Não deixem as vasilhas caírem, pois o roçado é longe!".
Nessa altura meus pés já começaram a arder com a ameaça dos calos causados por algumas topadas e os couros dos tamancos. Chegamos, por fim, ao rancho que tem o tamanho de 4x4 metros, coberto com cavacos e as laterais com varas amarradas com cipó. O roçado está cheio de arroz com palmo e meio de distância atingindo um palmo de altura. O milho um pouco maior com espaçamento de uma metro e meio de linha e uma metro de distância de uma planta para outra. A maniva começa a brotar.
Cícero dá algumas recomendações dentro de seu conhecimento:
- Enquanto faço o fogo e vou reparar algumas arapucas, vocês vão capinando. Não cortemos pés de arroz; cuidado para não arrancar a maniva; não cortem a jurubeba e ponham em cima de paus; o canapu cortem rés ao chão, depois arranquem o tronco; o capim Barba-de-bode amontoem; não vão confundir com os pés de arroz; o mato perto do milho tirem com a mão para não maltratar a raiz e prejudicar as espigas.
Diante de tanta observação, entendo que indiretamente está me ensinando, pois João, falando baixo, diz:
- Isso eu aprendi quando estava nascendo os dentes.
Já para mim quase todos os nomes são desconhecidos. Então achei prudente observar o que João fazia e imitá-lo. Ao entrar no roçado, observei algumas plantas rasteiras e perguntei a João que plantas eram aquelas. Ele respondeu que as folhas maiores eram de melancia e as menores de maxixe, também indicou os pés de jerimuns plantados onde foi tronco de árvores antigas, dos tempos de mata, onde a terra é forte e fértil. Na medida em que trabalhamos, João se distancia e embora me esforce não consigo acompanhá-lo, mesmo ele sendo mais franzino que eu. Assim, olha para trás e vem capinando em meu rumo e diz:
- Enquanto o patrão não vem trabalho perto de ti para gente conversar, pois o tempo passa ligeiro- e observa - Tu tá deixando mato na tua carreira.
- Que carreira? Pergunto.
- A carreira do milho - responde - Quando a gente capina por carreira, observa o pé da esquerda para o da direita. Quando a gente capina por eito é diferente, pode prestar atenção nas fileiras de milho - me explica.
Cícero chega dizendo que tinha um nambu debaixo da arapuca. O que é bonito é a quantidade de passarinhos e seus cânticos em torno do roçado. Curiós, patativas, coleiras, papa-arroz, enfim, esses conhecidos que são normalmente aprisionados por quem gosta; além de uma multidão de outros com cores variadas dos quais não se sabe o nome. Estes mais a distância fazem seus cantos ecoarem com mais força. Os outros cânticos são pombas galegas que estão no meio do sororocal. Cícero diz que vai procurar um cacho maduro para fazer uma espera e assim, matar algumas. Ouço um cântico um pouco parecido aos dos nambus. Cícero diz que aquilo é um gato maracajá arremedando-os para apanhá-los.
Um tucano de peito branco pousa numa árvore alta e começa a cantar, aos poucos outros respondem e, assim, vai aumentando o número até tornar-se uma festa; bandos de papagaios vão pousar em árvores frutíferas. Ouço um assobio grosso e prolongado, um mais perto, outro mais distante que chama a atenção de Cícero. Ele, então, começa a imitá-lo. Pergunto que cântico é aquele e ele me responde que é um nambu preta, a fêmea chamando o macho e concluí: "Qualquer dia destes vou fazer pirão delas".
São dez horas e Cícero convida-nos a quebrar o jejum pedindo o que se tinha trazido para preparar; dou-lhe um pedaço de carne-seca. João diz que a sua está pronta, pois trouxera uns capa homens - Gó - e solta uma grande gargalhada. João quando ri, o faz com todo o corpo e a saliva invade sua boca, dando muito trabalho para parar, causa-nos a impressão que morrerá sufocado. Cícero propõe que se coma o alimento de João e depois o nosso. Este não se faz de rogado. Tira de dentro de uma lata três peixinhos e um bocado de farinha dizendo que um é para quebrar o jejum e dois são para o almoço, enquanto assamos o charque e o nambu.
Procuro descansar sentado em um pedaço de madeira, meus braços e cadeiras já estão bastante doloridos, tenho um calo no pé e algumas furadas de espinho, minhas mãos ardem, mas não procuro demonstrar aos outros que conversam animadamente. Cícero diz que vai amolar minha enxada, depois de amolar a sua. Assim, o serviço recomeça; ele mais adiantado, depois João, por último eu.
O dia vai passando, quando a chuva aumenta vamos para o rancho, quando diminui voltamos ao trabalho. Peço a Deus um dilúvio. Um dilúvio, não; mas que a chuva se prolongue até o final do dia que para mim é o dia mais longo da minha vida. Cícero avalia a produção e diz que pelos seus cálculos precisará contratar mais algumas pessoas. Em dado momento convida-nos a ir embora, pois no dia seguinte haveria mais; além disso são cinco horas, os tucanos já estão cantando. Aprendo que aqui tucano é relógio.
Ao chegar em casa as perguntas são diversas. Mamãe quer saber tudo tintim por tintim.Explico-lhe todos os acontecimentos, até do pedaço de camisa que tirei para amarrar o calo de minha mão. Então depois de ouvir atentamente meus relatos minha mãe completa: "Tadinho de meu filho"!
Os dias passam, a rotina é a mesma; já suporto mais a dor e a fadiga dos primeiros dias. O roçado já tem maxixe que se põe no feijão, melancia, os jerimunzeiros estão vingando, aproveita-se os olhos da planta para pôr no feijão. São contratados outros trabalhadores. A prática de se trocar alimentos é comum, é uma forma de estar sempre conversando; dá até impressão de o dia passar mais rápido; as vezes tem alguns trabalhadores, mais espertos que outros, não querendo perder o dia de trabalho levam a lata suja de açúcar ou cereal dizendo que ao pôr no saco de viagem trocou a lata de alimento pela seca, mas mesmo não se acreditando participam das refeições juntamente com os outros. A limpa termina, o milho já está pendoado, o arroz dá sinal que vai soltar cacho.