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quinta-feira, 16 de junho de 2011

O CADASTRO

O funcionário municipal, agora ocupando uma das dependências da estação da estrada de ferro de Bragança, começa o serviço de cadastramento dos terrenos de proprietários rurais da vila. Ninguém tem conhecimento do que é um cadastro rural. Vitório Pinto é quem explica. Diz que o governo federal com este cadastro, terá conhecimento das condições de vida no campo, o que os agricultores produzem e como o fazem; dessa forma,poderá disponibilizar empréstimos para financiamento da produção e outras melhorias. Fala também que quem não fizer o cadastro ficará de fora desses benefícios e talvez até perca sua terra para o governo que repassará para o novo proprietário dentro do projeto de reforma agrária.
Os presentes não querem ser o primeiro, mas também não querem ser o último. Um diz ao outro: vai primeiro! e o outro: vai primeiro. O funcionário em tom de graça - venham, o cadastro não vai morder ninguém. E por fim o primeiro tem coragem entra: - nome Ozias Geraldo dos Anjos, estado civil - não entendo! replica o funcionário - estou perguntando se o senhor é casado. Casado. Qual o tamanho de seu terreno - 2 lotes; responde o agricultor - Qual a área beneficiada - Não entendo - O que você tem plantado. 10 tarefas de roça madura de inverno, 10 tarefas de roçado de verão com a primeira capina, 20 tarefas de roçado de inverno com arros, milho e mandioca. O milho já está bonecando e o arroz já está embuchando.
Agora quem não entende é o funcionário, mas dentro da informação entende que tem mais ou menos 10 tarefas de mandioca, 6 tarefas de arroz e 6 tarefas de milho, o embuchamento de arroz não interessava para o cadastro. Quantos animais bovinos, equinos, caprinos? Com essa pergunta o lavrador respondeu: danou-se, eu nunca criei esses bichos. O funcionário, com ar superior, pergunta. - eu estou perguntando se o senhor cria ovelhas, cabras, boi, cavalos? - Só tenho 3 cavalos, 2 para carga e um esquipador. Quantas galinhas? -Esse negócio de criação é com a mulher - Mas faça um cálculo - Então ponha a: 30 cabeças de galinhas poedeiras e frangos, uns 20 pintos, tem 3 cavalos e 2 porcas com bacurim e um barrão. Quantas ávores frutíferas? Aí é que quebrou dentro, pois eu nunca pensei em contar os pés de piquiá, uxi, mari, castanha, que é muito no terreno de mata sem contar os de açaí, abacaba. Não. Me dê as árvores que você planta. Faça um cálculo. E assim de cálculo em cálculo, os cadastros de Ozias Geraldo e dos demais foram feitos.
O que deu problema foram as grandes áreas cadastradas, pois quando veio o valor cobrando o imposto sobre a terra muitos não puderam pagar. Além disso, os arrendatários que ocuparam estas áreas com suas lavouras se acharam no direito de não pagar a renda com a esperança que o governo tomasse e repartisse com não tinha. Outro problema surgido foi que o ITR, imposto territorial rural, não dava direito à propriedade e muitos proprietários com grandes áreas ficaram com medo de perder seus terrenos, para o governo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

BENEFICIAMENTO DA MANDIOCA

"Isto é serviço para macho!" Foi essa a expressão que Luiza, uma das maiores lavadeiras de massa, me disse quando soube que eu seria o puxador de água. "E tem mais, se não der conta vai tomar banho de tucupi e vestir saia, pois não tô pronta pra ficar aqui até de noite por falta de água no tanque"! "Quem vai dar este banho?" - pergunta o proprietário da casa de farinha."Eu e Anunciada" - responde.
Anunciada é outra lavadeira que pouco fala, mas consente rindo.
Enquanto as raspadeiras descascam a mandioca, puco 60 latas do poço que tem uma profundidade de pelo menos 6 metros. Sou avisado que já tem bastante mandioca para por no banco e cevar. Ponho-as no tanque, lavo e vou enchendo o banco.
O cevador é Elias que, além disso, funciona o motor.
As lavadeiras transportam em cuias grandes a massa já pronta para separar a goma, o que é feito no pano que está esticado sobre os coxos. Elas põe água sobre a massa e esfregam até extrair toda a goma.
A água do tanque diminui; corro até o poço e puxo mais 20 latas. Já tem mandioca raspada e carrego para lavar e jogo dentro do banco. A massa lavada está dentro de uma lata de 20 litros - desta que transportam querosene.
Luiza xinga:"desocupa a lata de massa! Esse vai tomar banho de tucupi". Elias me orienta para que eu ponha a massa na prensa, acrescentando que vai dar uma ajuda ajeitando os panos da prensa.
Luiza diz: "vou levar esta massa para a prensa, pois não tem jeito este vai vestir saia". Não falo, mas discordo e me apresso em esvaziar as latas. As raspadeiras avisam que já tem muita casaca de mandioca para juntar.Uma ajudam pondo as cascas em caçoar, outras não.
Junto as cascas e as transporto para um casqueiro. Ponho mandioca no banco, puxo mais20 latas de água, ponho massa na prensa que já está cheia e Elias me ensina a fechá-lo. Luiza avisa: "Tá na hora de mudar o tucupi, pois não dá mais para lavar". Mudo o tucupi e corro com o caçoar cheio de casca.
Os cavalos entram suados como está quem os dirige, que chamam de cambiteiro. A distância entre a roça e casa de farinha varia de 02 a 05 quilômetros. São feitas 02 viagens. A primeira trouxe 03 cargas e a segunda 02. Se tiver muita goma dará cerca de 50 quilos por carga. Pelos cálculos das raspadeiras, hoje vão terminar mais cedo, pois a mandioca é grande e boa de raspar.
São 12 horas quando chega o cambiteiro com as 02 últimas cargas.As raspadeiras ajudam a descarregar os animais que depois irão tomar banho. Elias me avisa que tenho de terminar de encher os coxos de tucupi para que dê tempo de prosseguir o serviço; sendo que tenho de desocupar a prensa para por o resto da massa lavada. São 05 horas, as lavadeiras terminam as suas tarefas, encharcadas de tucupi e água.Com 20 latas de água termino de encher o tanque.Duas horas depois o proprietário esgotará os coxos do tucupi, desmanchará as gomas com água limpa, torcerá para dar 250 quilos.
Não tomei banho de tucupi, não vesti saia. Sou macho! 

A DERRUBADA

Todas as varas finas estão cortadas, assim como os cipós.Restam daquilo que foi capoeira densa, as árvores grandes. Sigo orientação para cortar as árvores pela frente e por trás a favor do mandado. Não entendo. Mas observando os que sabem. golpeiam para derrubá-las para onde desejam que elas caiam.. O corte pela frente é mais baixo, o de trás mais alto, sempre a favor do vento. Nesta altura outros machadeiros, com mais experiencias, escolhem algumas árvores frondosas para derrubá-las explicando que são os paus dos mandados. Quando são muito grossas, uns machadeiros cortam pela frente e outros cortam por trás até derrubá-las sobre as demais, que vão caindo num barulho ensurdecedor. Umas árvores gemem, outras teimam em não cair; deixando os machadeiros, que nesta altura estão bastante suados, com raiva e medo de que não voltem. Segundo explicação; quando os paus dos mandados voltam são um perigo causando a morte dos trabalhadores, pois trazem com eles outras árvores que estão entrelaçadas nos cipós. Cícero me chama para que puxe um cipó enquanto ele tenta derrubar uma árvore teimosa, outros ajudam, mas uma porção de árvores despenca no chão.
Uma embiara! - exclamou Raimundo. Tobias apontando para o oco de uma árvore. Quem sobe para ver o que é? As sugestões são diversas, até que se chega uma conclusão que é um quandú e depois que a árvore cair mata-se com o tiro. A árvore é derrubada em vez de um quandú, são dois.Enquanto um é morto a tiro o outro foge embrenhando-se no meio do roçado já derrubado. Raimundo encarrega-se de preparar a embiara e no outro dia trazer para que todos comam. Nunca tinha visto um quandú. O que me admirou é a quantidade de espinhos que servem para sua defesa quando atacado. No dizer de Raimundo, quando mais se puxa mais entra. Pergunto intrigado - como se tira? Raimundo responde - cortando a parte que fica de fora para sair o ar, mas perigoso mesmo é em cachorro quando pega o bicho que solta uma grande quantidade enfiando por todo o corpo, causando-lhe a morte.
Nem todas as árvores caem sob a organização de mandado, quando isso ocorre, elas são derrubadas individualmente por alguém escolhido para esse fim. Sou escalado para derrubar uma touceira de sabugueiro, são duas horas da tarde, o sol é quente, minha roupa está ensopada de suor, minhas mãos, embora não mais tenham vestígios de calo, ainda doem. Bebi grande quantidade de água, mesmo coma recomendação de que quando se está  em derrubada não se come muito. nem se bebe muita água. Começo a cortar. Os golpes não são como os de meus companheiros, eles são acostumados, eu não. A medida que corto, o suor aumenta. Algumas árvores caem, outras teimam em não cair se agarrando umas ás outras. Tento cortar, mas conforme se dão os golpes abrem-se fendas, soltam resina, que parecem ser sangue. Sinto a cabeça rodar, a vista escurecer, aos poucos vou caindo no tronco de uma árvore, vejo estrelas, mosquitos, pássaros, marimbondos. Não sinto o sol nem a roupa molhada de suor, minhas mãos não ardem, é silêncio, a árvore já não cai, os machados não cortam não ouço os gritos dos companheiros, gritos de vitórias quando derrubam o pau do mandado; gritos que soltam acrescidos de gargalhadas quando são ferrados por formigas ou marimbondos, grito de aviso: Turma tá na hora de quebrar o jejum e amolar ferramenta e beber água, almoçar!
Também aprendi: quando o machado de um silencia, grita-se por seu nome para saber se aconteceu algo. Ouço o grito dos companheiros se aproximando e ajudam-me a levantar, mandam que eu tire a blusa encharcada de suor e me fazem sentar ao pé de uma árvore e com a maior naturalidade dizem: deu cara branca! Comeu muito, bebeu muita água, foi trabalhar no sol. O comentário fica por muitos e muitos anos. A derrubada terminou. Resta esperar que seque para atear fogo. encoivarar e plantar. A rotina de trabalho continua.

domingo, 12 de junho de 2011

A BROCA

Estou juntamente com outros que amolam seus terçados. É uma prática muito interessante, pois quem amola para mostrar a qualidade do serviço e sua força procura uma árvore de regular grossura e desfere uma terçadada, decepando-a de um só golpe. Os demais, animados por tal demonstração fazem o mesmo; dessa forma, inicia-se uma porfia na qual não há vencedor, apenas o ambiente torna-se mais festivo.
Cícero amola seu terçado dizendo aos demais que pela primeira vez vou brocar. José do Banjo responde que vai me batizar quando chegarmos ao igarapé e logo o trabalho começa. Tenho a recomendação de ter cuidado com espinho de coquinho, de japecanga e com tiririca. O coquinho é fruto de uma palmeira cheia de espinho que quando entra no corpo é muito difícil de tirar. A japecanga é um cipó cujos espinhos são muito resistentes, já a tiririca é uma trepadeira cuja haste corta como navalha. Outra recomendação é para ter cuidado com ferrada de tucandeira. Pergunto a Cícero o que é tucandeira, e ele diz ser uma formiga cuja ferrada doe 24 horas. "Antes disso, só passa se uma virgem passar por cima três vezes e sem calça", arremata um trabalhador chamado Laurentino.
Em um espaço de duas horas tenho alguns cortes superficiais nos braços que ardem devido o suor. Vamos quebrar o jejum e amolar as ferramentas, diz Cícero e logo todos param. Piso num ninho de formigas cuja ferrada dói muito, mas logo passa. Mostro as mãos vermelhas e ardendo bastante, a orientação que recebo é de mijar nelas e passar no cabelo. Não entendo a recomendação, mas Cícero explica: "vai sempre passando a mão no cabelo e quando tiver vontade de mijar, faz nas mãos para engrossar e não deixar fazer calo e espocar se não tu não aguentas". Os outros não demonstram nem cansaço nem dores, sempre alegres, comentam suas dificuldades, falam de suas pobrezas e doenças, ensinando remédios; pois mais absurdo que possam parecer, são sérios.
Noto um trabalhador descalço, outro comenta o Raimundinho trabalha descalço só pata quebrar espinhos de coquinho e japecanga o que o deixa vaidoso e chego até a ficar com inveja. De repente uma ferrada acima do olho, outra ferrada na orelha, corro, outros correm, dói bastante, Laurentino diz que é maribondo tapiba e ensina põe a folha do terçado em cima que logo passa a dor o que faço imediatamente e aos poucos vai passando. 
É quase meio-dia, enquanto os demais companheiros trabalham tranquilamente já não consigo segurar o terçado, que as vezes escapa da mão e para abri-la tenho que auxiliar com os dedos da outra. Vem a ordem de parar e irmos ao igarapé. As roupas estão molhadas de suor, uns caem na água sem tirar a roupa. "Chegou a hora do batismo", diz Zé do Banjo. Não entendo. Ele me pega pelo braço direito, outro pelo braço esquerdo e me jogam na água. Não gosto da brincadeira, mas quando meu corpo encontra-se com a água fria, sinto que foi o melhor banho tomado em toda a minha vida.
O trabalho recomeça, outros marimbondos atacam defendendo suas moradas, os nome são diferentes como diferentes são as dores de suas ferroadas e os comentários que se seguem ao acontecido. Isso não dói. Dói mesmo é a ferrada da tatucaba e de mangangá. "Este é um frecheiro vou mostrar que tiro a casa dele com a mão", exclama Cícero. "Eu também tiro", diz Zé do Banjo. Cícero se adianta, passa a mão debaixo do braço e aproxima aos poucos da casa de marimbondos que vão diminuindo sua agressividade com mau cheiro forte do suor. Cícero tira a casa mostrando a todos com ar de triunfo.
Zé do Banjo diz: "Quero ver se tu és homem em tirar a casa do marimbondo tapiba". Cícero diz: "não tiro porque ele faz casa com as formigas tapibas". Nesta altura tínhamos deixado para trás parte da vegetação, onde estava localizada a casa do marimbondo tapiba, Cícero fez um feixe com folhas de sororoca e queima-os dizendo para quando chegar a derruba não ferrar ninguém. Laurentino se cortou! - exclama Raimundinho - foi muito? - Pergunta Zè do Banjo e logo todos são avisados. Laurentino vem pulando só com um pé e não deixa de ter comentários - parece até o curupira! Todos examinam, o golpe, quando vêem que não tem gravidade diz um dos trabalhadores - foi uma vacina! è para sair o sangue ruim - póe logo em cima! Diz Raimundinho. Lodo de pau para por sobre ferimento presta? - eu pergunto - presta para estancar o sangue! Diz Zé do Banjo. O golpe está derramando bastante  sangue e outros comentários logo surgem -quando o corpo esfriar estanca! É porque ele está bastante agitado! E examina-se qual a roupa mais frágil e com presteza todos querem cortar parte da sua. Alguém se adianta corta parte da sua e amarra logo o golpe.
Ao passar dos tempos o solado de meus pés estão mais grosso, minhas unhas mais resistentes, os espinhos que penetram nos meus pés não doem muito, os espinhos são tirados na hora cortando-se a parte do solado com faca peixeira. Outros são deixados até apustemar. A pele da minha mão que era fina encaliçou o que faz com que eu não tenha mais problemas com calos.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

METAMORFOSE

Com a orientação de Cícero compro alguns materiais para iniciar essa nova vida de trabalho: um par de tamancos, uma enxada e um chapéu de palha. Quanto a alimentação levo um pouco de farinha, feijão, toucinho e charque que será preparado no local de trabalho, pois já existe um rancho onde se pode passar a chuva e fazer refeições.
O roçado dista cerca de cinco quilômetros da ila. Como estávamos no mês de janeiro, antes de chegar tomamos o primeiro banho de chuva. Cícero pede a Deus que a chuva não se prolongue por todo o dia, pois pretende fazer a primeira limpa antes do arroz embuchar e o milho embonecar, o que me deixa curioso para conhecer estas palavras até então desconhecidas. Quando vou perguntar, ele se volta com um gesto para que pare, também põe o dedo na boca pedindo silêncio o que faço automaticamente então penetra mata adentro. Enquanto espero, escuto o canto de araquãs como se estivessem conversando ao amanhecer e fazendo planos para suas atividades diárias. Ouço um chamado diferente como se algo de errado estivesse acontecendo aos pássaros . Nesta altura chega mais uma pessoa que também para. É João Izabel que vem trabalhar como diarista. Pergunto-lhe o que está acontecendo. Ele responde que aquele piado diferente é de Cícero arremedando os pássaros. numa linguagem de pedido de socorro para que eles se aproximem. De repente um tiro ecoa; alguns pássaros dão grito de espanto e voam por sobre nós, pouco tempo depois, Cícero sai do mato exibindo uma araquã morta exclamando: "hoje eu como carne fresca!".
A caminhada continua. Pergunto a João o que é embuchamento de arroz, embonecar de milho e por que Cícero diz precisar limpar logo o roçado. João responde que com a limpeza o legume cresce mais forte. Além do mais, esta só pode ser feita antes do arroz embuchar e o milho embonecar, senão dá o chia. Pergunto o que é o chia. João responde que quando se capina perto do arroz soltar o cacho e o milho de encher a espiga prejudica a formação destes, por isso dizemos dá o chia.
Algum tempo depois chegamos ao igarapé onde aproveitamos para pegar água com as vasilhas disponíveis. João leva uma moringa. Cícero, um pote, e eu uma coité. Cícero observa: "Não deixem as vasilhas caírem, pois o roçado é longe!".
Nessa altura meus pés já começaram a arder com a ameaça dos calos causados por algumas topadas e os couros dos tamancos. Chegamos, por fim, ao rancho que tem o tamanho de 4x4 metros, coberto com cavacos e as laterais com varas amarradas com cipó. O roçado está cheio de arroz com palmo e meio de distância atingindo um palmo de altura. O milho um pouco maior com espaçamento de uma metro e meio de linha e uma metro de distância de uma planta para outra. A maniva começa a brotar.
Cícero dá algumas recomendações dentro de seu conhecimento:
      - Enquanto faço o fogo e vou reparar algumas arapucas, vocês vão capinando. Não cortemos pés de arroz; cuidado para não arrancar a maniva; não cortem a jurubeba e ponham em cima de paus; o canapu cortem rés ao chão, depois arranquem o tronco; o capim Barba-de-bode amontoem; não vão confundir com os pés de arroz; o mato perto do milho tirem com a mão para não maltratar a raiz e prejudicar as espigas.
Diante de tanta observação, entendo que indiretamente está me ensinando, pois João, falando baixo, diz:
       - Isso eu aprendi quando estava nascendo os dentes.
Já para mim quase todos os nomes são desconhecidos. Então achei prudente observar o que João fazia e imitá-lo. Ao entrar no roçado, observei algumas plantas rasteiras e perguntei a João que plantas eram aquelas. Ele respondeu que as folhas maiores eram de melancia e as menores de maxixe, também indicou os pés de jerimuns plantados onde foi tronco de árvores antigas, dos tempos de mata, onde a terra é forte e fértil. Na medida em que trabalhamos, João se distancia e embora me esforce não consigo acompanhá-lo, mesmo ele sendo mais franzino que eu. Assim, olha para trás e vem capinando em meu rumo e diz:
        - Enquanto o patrão não vem trabalho perto de ti para gente conversar, pois o tempo passa ligeiro- e observa - Tu tá deixando mato na tua carreira.
        - Que carreira? Pergunto.
        - A carreira do milho - responde - Quando a gente capina por carreira, observa o pé da esquerda para o da direita. Quando a gente capina por eito é diferente, pode prestar atenção nas fileiras de milho - me explica.
Cícero chega dizendo que tinha um nambu debaixo da arapuca. O que é bonito é a quantidade de passarinhos e seus cânticos em torno do roçado. Curiós, patativas, coleiras, papa-arroz, enfim, esses conhecidos que são normalmente aprisionados por quem gosta; além de uma multidão de outros com cores variadas dos quais não se sabe o nome. Estes mais a distância fazem seus cantos ecoarem com mais força. Os outros cânticos são pombas galegas que estão no meio do sororocal. Cícero diz que vai procurar um cacho maduro para fazer uma espera e assim, matar algumas. Ouço um cântico um pouco parecido aos dos nambus. Cícero diz que aquilo é um gato maracajá arremedando-os para apanhá-los.
Um tucano de peito branco pousa numa árvore alta e começa a cantar, aos poucos outros respondem e, assim, vai aumentando o número até tornar-se uma festa; bandos de papagaios vão pousar em árvores frutíferas. Ouço um assobio grosso e prolongado, um mais perto, outro mais distante que chama a atenção de Cícero. Ele, então, começa a imitá-lo. Pergunto que cântico é aquele e ele me responde que é um nambu preta, a fêmea chamando o macho e concluí: "Qualquer dia destes vou fazer pirão delas".
São dez horas e Cícero convida-nos a quebrar o jejum pedindo o que se tinha trazido para preparar; dou-lhe um pedaço de carne-seca. João diz que a sua está pronta, pois trouxera uns capa homens - Gó - e solta uma grande gargalhada. João quando ri, o faz com todo o corpo e a saliva invade sua boca, dando muito trabalho para parar, causa-nos a impressão que morrerá sufocado. Cícero propõe que se coma o alimento de João e depois o nosso. Este não se faz de rogado. Tira de dentro de uma lata três peixinhos e um bocado de farinha dizendo que um é para quebrar o jejum e dois são para o almoço, enquanto assamos o charque e o nambu.
Procuro descansar sentado em um pedaço de madeira, meus braços e cadeiras já estão bastante doloridos, tenho um calo no pé e algumas furadas de espinho, minhas mãos ardem, mas não procuro demonstrar aos outros que conversam animadamente. Cícero diz que vai amolar minha enxada, depois de amolar a sua. Assim, o serviço recomeça; ele mais adiantado, depois João, por último eu.
O dia vai passando, quando a chuva aumenta vamos para o rancho, quando diminui voltamos ao trabalho. Peço a Deus um dilúvio. Um dilúvio, não; mas que a chuva se prolongue até o final do dia que para mim é o dia mais longo da minha vida. Cícero avalia a produção e diz que pelos seus cálculos precisará contratar mais algumas pessoas. Em dado momento convida-nos a ir embora, pois no dia seguinte haveria mais; além disso são cinco horas, os tucanos já estão cantando. Aprendo que aqui tucano é relógio.
Ao chegar em casa as perguntas são diversas. Mamãe quer saber tudo tintim por tintim.Explico-lhe todos os acontecimentos, até do pedaço de camisa que tirei para amarrar o calo de minha mão. Então depois de ouvir atentamente meus relatos minha mãe completa: "Tadinho de meu filho"!
Os dias passam, a rotina é a mesma; já suporto mais a dor e a fadiga dos primeiros dias. O roçado já tem maxixe que se põe no feijão, melancia, os jerimunzeiros estão vingando, aproveita-se os olhos da planta para pôr no feijão. São contratados outros trabalhadores. A prática de se trocar alimentos é comum, é uma forma de estar sempre conversando; dá até impressão de o dia passar mais rápido; as vezes tem alguns trabalhadores, mais espertos que outros, não querendo perder o dia de trabalho levam a lata suja de açúcar ou cereal dizendo que ao pôr no saco de viagem trocou a lata de alimento pela seca, mas mesmo não se acreditando participam das refeições juntamente com os outros. A limpa termina, o milho já está pendoado, o arroz dá sinal que vai soltar cacho. 

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O RETORNO A AMERICANO

A ocupação de Santa Izabel do Pará iniciou-se no ano de 1875, com acordo do presidente da província com os cidadãos americanos. Mil aceitaram ocupar a nova colônia; sendo que logo embarcaram; sendo denominada Nossa Senhora do Carmo de Benevides.
Nesse período, chegaram 180 colonos: 87 franceses, 35 italianos, 33 espanhóis, 11 alemães, 8 belgas, 2 argentinos elevando o número de imigrantes para 364.
Em 1877, por por motivo da grande seca, chegaram 800 nordestinos. No ano de 1878, chegaram 12500 imigrantes perfazendo um total de 13300 colonos.
Para esclarecer os leitores, a organização fundiária atual de Santa Izabel do Pará é composta das colônias Núcleo Colonial Nossa Senhora do Carmo de Benevides, com 572 lotes, colônia Araripe (Americano, 1888, com 218 lotes), Nucleo Colonial Gleba Tacajós e Pernambuco, criadas no governo João Goulart. Outras áreas demarcadas foram efetuadas com a criação da delegacia do ITERPA, no governo Jader Barbalho; sendo que essas áreas localizam-se no Baixo Caraparú; sendo que o módulo agrícola das colônias obedeciam a metragem de 330x660, ou 250x1000 metros. Já na demarcação das áreas feitas pelo ITERPA, não obedeceu este critério, pois as terras já estavam ocupadas por antigos moradores.
A colonização remonta ao ano de 1885, cujo nome foi denominado Colônia Araripe, em homenagem ao presidente da província doutor Tristão de Alencar Araripe. Teve sua fundação oficial no ano de 1886, pelo doutor Olavo da Costa. Os trabalhos foram iniciados em 1885 e concluídos no ano de 1886, já na administração do desembargador João Araújo Freitas Henrique, cujo objetivo principal era a contratação de imigrantes açorianos que ao chegarem ao local não quiseram nem saltar do comboio ferroviário que os trouxe.
De fato eio a ser povoado a partir do ano de 1888, com a vinda de flagelados nordestinos da terrível seca daquele ano. Vale salientar que a vinda dos açorianos foi em decorrência da atividade de vulcões em seu pais.
Em 1889, chegaramoutros imigrantes estrangeiros - espanhóis, portugueses e americanos - ocupando as terras dos núcleos coloniais Ferreira Pena e Araripe, com 218 lotes de vinte e cinco hectares onde foram localizaos, além deles outros trezentos nordestino.
Os estrangeiros recebiam durante os seis primeiros meses alimentação necessária para seu sutento e mais seis meses meia ração até completar um ano de instalação, casa para sua residência e uma roça já plantada e no caso de não se adaptarem despesa para repatriação. Já ao nacional era dado umlote de terra e o local para armar suas barracas (tapiri). No ano de 1909, já existiam uns engenhos na vila ou núcleo coloniais, uns engenhos movido a vapor, algumas hidrelétricas e duas serrarias.
O núcleo Colonial Araripe passou a ser denominado Americano em função de existir grande propriedade pertencente a um imigrante americano, conhecido pelos moradores por Quelemon, mas cujo nome verdadeiro era Clemont ou Kelmom. Nesta mesma localidade ainda funcionava um curtume denominado Curtume Americano, que depois foi transferido para a capital. O certo é que ganhou nome de vila e como diz o velho ditado que a voz do povo é a voz de Deus, foi oficializado pelos que governam.
Estou retornando da capital onde passei quatro anos trabalhando. Salto do trem e algumas lembranças envolvem minha memória. Lembro-me que era aqui, em torno da estação que brincávamos de pira mãe e outras brincadeiras. Também recordo que morávamos quase em frente a estação; assim, toda novidade chegada pelo trem, eu ia correndo gritando dar ciência a minha mãe.
Neste envolvimento de lembranças. relembro que, certa manhã, saltaram várias famílias com crianças mal vestidas,  mostrando grande cansaço da   viagem. Algumas pessoas diziam se tratar de arigós expulsos pela seca. Então saí gritando em direção a minha casa:
  - Mamãe, mamãe! Chegou no trem muita gente que dizem ser arigós.
  - Arigós, não, meu filho. São retirantes fugindo da seca - Explicou-me mamãe - Assim como meu pai, minha mãe e eu chegamos aqui.
Imediatamente preparou comida do pouco que tinha e ordenou:
  - Vá deixar para as crianças, pois quando chegamos também nos ajudaram.
Quando retornei à estação já havia pessoas arranjando algum alimento para eles e aquelas famílias, em pouco tempo, passaram a fazer parte da vida econômica e social da vila, fazendo farinha de metade, empreitadas em troca de gêneros alimentício, etc. Mas quando chove no nordeste os retirantes voltam às suas origens a passeio, porém uns ficam definitivamente até que a seca os expulse novamente.
De volta a realidade, encontro vários colegas que são mais conhecidos pelos apelidos: Jaburu; Mazinho, ou Sete Línguas; Barraca; Pedrão; Zezinho; Negão Otávio e seu irmão, José Bate-estaca; Budela e Samuel, seu irmão mais novo, que por seus próprios nomes. Encontro ainda Cícero, um dos irmãos mais velhos de Otávio e José, que mora perto da minha casa. Ele me acompanha falando de seus trabalhos e por fim acaba me convidando para trabalharmos juntos, fazendo alguns dias de serviço e trocando outros.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A GUERRA DOS HOMENS SEM TERRA

Um poema aos que lutaram, liderando movimentos pela sobrevivência e direitos dos que não sucumbiram ao poder do Estado.


Que gente são essas, trajando mortalha?
Não portam fuzil, não portam canhão, não portam metralha
Conduzem enxadas, conduzem machados, conduzem facão
São homens sem terra, que fazer guerra por falta de chão


São brancos, são negros, mulatos, morenos
Adultos, crianças, não há distinção
Que tem uma causa com muita razão
São gente sem terra
Que fazem guerra por falta de chão


Do norte e do sul, do leste, oeste sem ter direção
Que saem da cidade e vão pro sertão
Que vão pras cidades que saem do sertão
São homens sem terra, que fazem guerra
Por falta de chão


O protesto é ouvido... estão sendo discutidos
Interesse envolvido em toda a nação
A lei dos sem terra que fazem guerra
Por falta de chão


O Congresso aprova, o governo sanciona, o diário publica
A imprensa anuncia para toda nação
A lei dos sem terra que fazem guerra
Por falta de chão


Ficou escrito, ficou o edito em toda nação!
Tem corpo estendido, tem muito gemido
O luto é sentido em toda nação.
Os líderes da guerra, da gente sem terra
Ganharam a terra debaixo do chão.

DIRETO DE AMERICANO PARA O MUNDO LER!

Nestas singelas linhas que ora transcrevo, todas foram escritas a partir de minha vivência como participante dos fatos que brevemente narrarei aqui neste espaço. Assim, por mais falho que eu possa ser nada foi perguntado e sim vivido de corpo, alma e espírito.
Não será um trabalho para demonstrar minha capacidade de escritor,mas como parca contribuição à nossa história, pois quem sabe se outras pessoas ao lerem estas palavras possam sentir o desejo de aprofundá-las.
Publicarei primeiramente o conteúdo do livro A REFORMA AGRÁRIA QUE EU VIVI, VI E OUVI, e depois NO MUNDO DOS QUE GOVERNAM.Que retratam o tempo das transformações agrícolas, sociais e políticas de nosso Município e Estado.
Boa leitura a todos!